domingo, 3 de agosto de 2008

Um amor como o primeiro.

Nasci simples. Lembro-me pelo recorte das tardes soalheiras, que na minha essencia nada mais havia que simplicidade. Só depois é que me complicaram. Com o meu nascimento acendeu-se na minha mãe, a depressão, a angústia, de ter perdido 10 anos antes o seu primeiro filho. Fui ensinada a ser a sombra do meu irmão. Não podia correr. Não podia brincar. às sombras nada de mal lhes acontece e assim a minha mãe, me via protegida de um destino de morte subita. Julgo que todos à minha volta, percebiam perfeitamente o que se passava com a minha mãe, porque todos (tios, tias, amigos, pai) a censuravam de vez em quando: deixa a miuda brincar! Salvaram-me os primos, quando nos visitavamos semanlmente, os livros que eram a forma mais inofensiva de passar o tempo e confesso, a minha critividade com o lápis, com o qual desenhava centenas de bonecas todas elas gozando de uma grande liberdade de acção. Mesmo assim, parti candeeiros e canecas, cheguei a casa coberta de tinta, num tempo em que as carteiras da escola tinham tinteiros, arranhei joelhos, parti inumeras vezes as lentes dos óculos e sobrevivi à fractura de um braço.

Não me sentia infeliz, apenas presa. Presa a uma mãe que não nadava para fora de pé.

Por isso, aos fins de semana, soltava-me pelas mãos do meu pai, que me levava ao cinema, aos jardins, à praia, às livrarias, à cervejaria a comer um prego e à Central da Baixa para comer um bolo e que...claro! nadava para fora de pé, comigo no seu encalço.

Os meus pais amavam-se imenso. Tinham um casamento feliz, uma relação baseada nos valores tradicionais, amor, fidelidade, confiança, respeito. Nunca ouvi um grito, nem uma manifestação de azedume em qualquer um dos rostos em relação ao outro. Normalmente as chatices aconteciam por minha causa, como a minha mãe, depois me explicava, culpando-me porque os tinha feito discordar. Ou porque eu não fazia o que ela me pedia, ou porque eu lhe respondia "torto" ou porque eu...qualquer coisa.

Reponder torto à minha mãe, significava que eu não lhe dizia "sim, mamy" mas que lhe manifestava o que eu pensava sobre aquela proibição ou sobre aquele raspanete que ela me dava. A minha mãe, habituada que estava ao silencio submisso do meu irmão morto, nunca reparou que a sombra procurava o sol. E nunca descobriu que eu tinha direito ao sol.

Tinha ficado maternalmente presa ao seu primeiro filho, como imagem de perfeição.

O meu primeiro amor, o que nutria pelos meus pais, tem duas vertentes, complexas: "fugir" de quem não me via e compreendia e me prendia na sombra e entregar-me sorridente e com confiança a quem me dava novos caminhos a descobrir, novos ensinamentos, evolução.

E tem sido assim toda a vida. Procurei um homem que me visse, como realmente eu era e fugi dos que me quiseram à sombra, domesticada e obediente, sem por em causa o que os movia.

É linear: procuramos o "pai" e acabamos por encontrar a "mãe".


A minha primeira relação, durou 1o anos, a segunda, 13 e a terceira, 4.

Se as duas primeiras foram coroadas pelo meio, com um casamento, a terceira dispensou esse ritual.

Depois da morte do meu segundo marido, uma nuvem ocupou a maior parte do meu ser pensante. Vivi -sei-o bem- com essa nuvem até há 9 meses atrás.
Até que, pela força do vento, ela se afastou e tudo ficou mais claro.


Até em relação à minha mãe: já não tento explicar-lhe nada, nem fazê-la compreender o percurso da sombra, tarde demais para palavras, aconchego-lhe o casaco de malha ao corpo, dou-lhe um beijo e levo-a pelo passeio do sol.

E mais uma semana se passou, treino intensivo de paciencia, confesso que estou a envelhecer, já não sofro por amor... :)

7 comentários:

Lizzie disse...

Marginal,
quando morre uma criança, deixa de ter sido real. Os mortos não contestam, vivem ao sabor das necessidades dos vivos, acomodam-se às necessidades e aos sonhos dos que ficam.

Também cheguei depois da morte de um irmão. Mas varri-lhe a sombra com teimosia e vontade. É o que dizem.
Não lhe herdei os caracóis entre o loiro e arruivado, nem a doçura, nem a obediência.:)
Tornei-me especialista em furar a disciplina e a rasgar e sujar roupa.
Tinham mais medo que eu vivesse demais do que de outra morte.
Quando ouvia "esta vai ser fresca", perguntava se ia ficar no congelador. Fonte de desespero.
Nada como aprender a dizer não, nem que seja com um olhar, logo no início.

A obediência aos fantasmas dos outros, que fique para quem já morreu.

Marginal disse...

Lizzie,

"...tinham mais medo que eu vivesse demais..." :)

...nós só varremos o chão de um coração que se abre. Impossivel varrer, limpar, quando o coração se fechou num passado longinquo e nós nao somos mais que um "desespero" :)

...ainda para mais diferentes da criança que de tão recordada e imaginada, virou real.

Ainda hoje, Lizzie, chora agarrada ao "carrinho" que me foi interdito na infancia, à rivelia do meu pai(que não sabia que o carrinho ainda existia), enquanto vivo. Ainda hoje desabafa: "dizem que com o tempo passa, mas cada vez as saudades dele são maiores"...

O meu irmão morreu há 58 anos.

O meu pai há 34 anos.

Fui mãe da minha mãe quando o "destino" assim o quis...e fui mãe dela, muito nova, aos 14...

Aprendi (com o tempo) a perdoar-lhe o devaneio, como se perdoa o sonho, a um filho que não consegue andar, preso a uma qualquer cadeira...

Aprendi, depois de ver que nada que eu fizesse ou tivesse feito lhe mudaria o rumo. Aprendi depois de muitos "nãos", depois de muitas chantagens caírem em saco roto, depois de muitas tempestades que ela dizia serem causadas "pelos nervos" a que eu a submetia, quando lhe queria mostrar o outro lado, quando não me via domesticada, resignada à sua dor e "destino" e me via independente, a viver a minha própria vida.


Há três anos, levada por um arrependimento,uma lucidez subita, pediu-me desculpa e contou-me o que eu sempre soubera e intuira...

"já se passou uma vida, mãe, estive sempre ao teu lado, só não aceitei a resignação que querias para mim...e não precisas pedir desculpa, está tudo bem..."

...depois, o sonho veio e de novo e a levou para o filho perfeito, o marido nunca esquecido...

Sinto um grande amor indulgente por ela, o que de vez em quando não me impede de lhe dizer: goza estes anos de vida com todos os teus achaques e não inventes mais nenhum! Não podes correr, anda, não podes comer de tudo, come o que ainda podes, não tens vontade de rir, sorri apenas...pelo menos quando eu chego e tu me abres a porta!!

...ouve-me, mas não me liga, continua na melhor companhia, na sua casa tecida de memórias...


E sabes que mais? já se passou mesmo uma vida...

Lizzie disse...

Marginal,
se há coisa que já aprendi, é que não se pode mudar o lado de dentro das pessoas.
Seja lá ele qual fôr.

A natureza de cada um pode-se limar, contrariar, mas não muda. Talvez neste caso entre nos dois sentidos a palavra frustação: para quem quer que o outro "veja" e para quem não quer ver.

Talvez a tua mãe não goste do mundo presente, são mais fáceis os fantasmas. Talvez lhe deêm conforto na sua vida sonhada.
Toda a gente foge um bocadinho da realidade. Alguns fogem totalmente.
Não sei se por fraqueza, egoísmo ou outra coisa qualquer.

E, de uma forma ou de outra, nunca esquecem. A minha mãe nunca falou muito no "menino". Mas depois do meu pai morrer, descrevia pormenores.

O medo que eu vivesse demais, deve ler-se: fuga para escolher as próprias opções de vida, fora dos canones correctos da imagem da família.
Para eles ( família em geral à excepção dos tios Antónios Adrianos de que já lá falei e dos ingleses do outro lado)sempre fui a rebelde; olhando-me, sempre me achei trabalhadora,responsável e sobrevivente. Dentro da profissão, de uma disciplina enorme. Aí tem que ser. Porque se quer.

E olha, ao pé de mim, a minha mãe é uma criança. Costumo dizer que sou mais velha que ela. Feliz ou infelizmente, conheço melhor o mundo.

De certa forma, elas não largam o berço que construíram. E é inútil culpá-las por isso. Agora que está sózinha, também lhe vou dando umas almofadas para que fique mais confortável. Quem me dera dar-lhe mais.

Tenho pena mas nunca esteve na minha natureza ser uma "tia" respeitável, obediente, reprodutora, a tapar os males do mundo com papel de seda.

Talvez por isso a minha diga que sou "forte", coisa que mesmo sem as filhas saberem, é dito que já ouvi a muitas mães. Aqui, em Espanha, em Inglaterra, nos Estados Unidos.

Não ouvi à tua porque não a conheço, mas é coisa que quase se adivinha.

Marginal disse...

Lizzie,

Não precisavas traduzir o "medo de que vivesse demais", compreendi-o exactamente como tu o explicas, foi esse o medo que a minha mãe vivenciou, foi esse -sempre- o medo que lhe vi no olhar, o medo que a minha vivência me levasse demasiado longe das suas asas, que sem me protegerem, me prendiam.

Se fosse caso de protecção, teria protegido a minha infancia da visita religiosamente semanal e longa ao cemitério, teria-me protegido da sentença de morte que os medicos lhe segredaram, em relação ao meu pai, teria lutado para que eu continuasse a estudar e teria arranjado um emprego, afinal só tinha 48 anos! :)

Era apenas o medo de ficar só e de "ter" de ser forte. Julgo que me tendo a mim lhe foi possivel fugir da realidade, através do sonho...para um mundo idealizado à sua medida: tinha as personagens que lhe davam "cuidados" -eu e as minhas filhas- e as personagens que a embalavam em amor, sem lhe darem qualquer preocupação -o meu pai e irmão.


Ela acha-me forte, sim :)

Meia destravada, cabeça no ar, imperfeita a seus olhos, com o ferro de engomar ;) imperfeita ao ponto de pegar num livro à noite e deixar o pó para o dia seguinte ;)imperfeita ao ponto de, sabendo-a sozinha, ir à praia de vez em quando ;) ir a Londres ;) ter a minha vida ;) maluca o suficiente para gostar de barcos ;) mas forte.

Mal sabe ela, que foi em si mesma, o embrião de tanta força...

Esta noite, vou conhecer "a tua familia" :) e ler-te, descobrindo-te pausadamente...

Agora, vou a correr para o ferro de engomar ;) tentar aperfeiçoar a técnica milenar de tirar rugas a panos :)

Beijos

Alien8 disse...

Marginal,

Curioso: Viver à sombra foi coisa que também me aconteceu, felizmente não durante muito tempo. Não à sombra de alguém desaparecido, mas à sombra de mim mesmo, superprotegido, como que metido numa redoma, por questões de saúde que, afinal, nem tal justificavam. Assim que ouvi isso, escapei-me, e pronto.

Nada de comparações, como no teu caso. E, como sabes bem, as mães são, as mais das vezes, assim mesmo, como a tua, e muitas precisam da mãe que (já) não têm...

Ainda bem que a tua nuvem se foi. Quanto a já não sofreres por amor... quanto a estares a envelhecer... nunca digas: Desta água não beberei :) Envelhecer? No lo credo, Marginal, no lo credo!

Beijos.

Marginal disse...

Alien,


Imagino o teu sacrificio!

Grande seca ;)

E felizmente eram infundados os receios!!

Quando eu digo envelhecer, tem a ver com a maturidade, o equilibrio, entre o racional e o emocional :)embora às vezes ainda me sinta acometida de breves ataques de irritação :) porque são situações de comprovada falta de respeito por outros...

E, o "já não sofro por amor" :) esta relacionado de todo, com um livro da Lucia Etxbarria, com o mesmo nome, sobre relações tempestuosas e onde se aprofunda o percurso dos varios perfis, as varias dependencias psicologicas, os vicios de emoção...

Eu raramente digo: Nunca.

Sempre tive consciencia d tempo, das mudanças em nós, através do tempo...

De qualquer forma, sinto-me feliz por este espaço em branco na minha vida, por este "estar sózinha".

É uma ausencia de emoções, benefica, um arrumar de assuntos pendentes, um resolver de todas as situações.

Há anos que não vivia sem penas, sem lamentos, sem memórias que me entristeciam, sem agitações, sem batalhas a travar em nome do "bem"... (já vou responder ao outro comentario)


Obrigada por me leres e principalmente por comentares; estas conversas, a par das da Lizzie e da Lola, são de ouro e pedras preciosas :)

Algo muito raro de se ver e ainda mais raro de se ter :)

sou uma sortuda :)

Alien8 disse...

Marginal,

Também nós! :)