quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Navego-me longe pela vela da memória.





Aporto-me em campo de ourique. Revejo a Rosarinho de olhos azuis, alta e magra, viva, aberta para o mundo, de uma simpatia espontanea e natural, sem vaidades, no seu papel de anfitriã. A Teresa Paula, morena, de mais silêncios, calmamente segura. A Bé, risonha e querida, ternurenta.

Tardes de 5ª feira de sol, na minha vida sombreada. O rio lá longe, cigarros fumados à rivelia, a música da primeira, trazida dos e.u.a onde o pai trabalhava, a tertúlia das miúdas, todas tão diferentes entre si.



Da Rosarinho guardei as cartas, durante anos a fio; quase juro que sou capaz de possuir uma ou duas, das cartas escritas nos nossos verões, nas nossas ausências na vida da outra. Traziam-me um mundo novo descrito em papel, o mundo visto pelos seus olhos, quando, para matar saudades do pai passava parte do verão na Califórnia, e depois já regressada, esperava pelo recomeço das aulas, perto do guincho, em casa da avó. Os nossos primeiros amores ali contidos nas folhas que enchiamos tão rapidamente, que o correio era quase diário, as nossas esperanças, as nossas descobertas, as nossas melancolias...



Consigo recordar-me da sua expressão divertida, contando do seu primeiro amor , um Peter louro, que tinha uma vespa, lindo; como decerto ela se recordará da minha expressão sonhadora, falando do "Piu" que parecia por fim reparar em mim, mas tão distante, à distância de um rio que eu ainda não sabia navegar.



Nessas tardes de sol, ainda com a vida a espreguiçar-se em nós, impunhamos temas para debate.



Debatiamos a liberdade conquistada ainda ontem, debatiamos o amor, livre ou condicionado, o divórcio que tinha acontecido aos seus pais, com a máxima educaçao e sem que nenhum, alguma vez, tivesse infringido uma regra que fosse, a morte do meu pai, o meu futuro ameaçado, o relógio sempre a lembrar-me do cumprimento do dever de partir, debatiamos o futuro neste país, o passado deste mesmo país. Debatiamos a Igreja e a doutrina. Debatiamos o que esperavam de nós, o que exigiam de nós, os limites impostos pela sociedade, os muros que saltariamos pela ansia de saber e descobrir. Os que nunca saltariamos, os que não nos víamos a saltar.

Até que um dia, fomos ao quarto do seu irmão, buscar um qualquer disco, que se impunha ouvirmos, naquele momento, chegadas que eramos a uma qualquer verdade mais ou menos absoluta, -tinhamos 15 anos ;)


Na parede, sobre a cama estava um pequeno poema.


Tenho-o trazido comigo, em memória, ao longo destes mais, de 30 anos.
Ontem à noite, lembrei-me pela primeira vez de o procurar.
E encontrei-o.

Quando o vento sopra daquela forma que parece conter-me na minha caminhada, quando sinto a fúria da injustiça ou da revolta , tentar ganhar terreno dentro de mim, procuro a calma e a serenidade que o poema de Rudyard Kipling proclama...

IF you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you,
But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise:


If you can dream - and not make dreams your master;
If you can think - and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools:


If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: 'Hold on!'


If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with Kings - nor lose the common touch,
if neither foes nor loving friends can hurt you,
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And - which is more - you'll be a Man, my son!


Perdi no entretanto o endereço da Rosarinho, num tempo em que ainda não existiam telemóveis.

Reconheci a sua letra, um dia, numa ficha de trabalho e telefonando-lhe entre risos, soube-a de regresso a Portugal.

Num dia de saudade, anos depois, através de uma tia, que mantinha o telefone, o apelido e o bairro de Lisboa, voltei a sabê-la bem.

Por fim uma noite, à porta do Amoreiras, o encontro surpresa, o abraço mútuo, autêntico.


Além do seu sorriso, do brilho do azul dos seus olhos, de uma ou duas cartas, que, quase juro, conseguirei encontrar entre outras reliquias, guardo ainda estas palavras, como exemplo de uma forma de vida...humanamente, quase impossivel...

10 comentários:

Lizzie disse...

Antes de mais, muito obrigada pelas leituras e pelos comentários:sensibilizam, estimulam e dizem que vale a pena!

A minha experiência é diferente da tua.
Parti muito cedo, parti de muitos sítios, tive uma vida cigana, fiz amizades que se partiram, à excepção de duas que ainda continuam fortes, com a distãncia.
Fica sempre tanta coisa por dizer. Mas vai-se perdendo o rasto, para além de uma ou outra notícia de jornal.

O ano passado houve em Madrid um grande encontro. Calhou por causa de um projecto. Mas nesta vida as pessoas tornam-se caladas. Nunca se pergunta quase nada com medo da resposta e com mais medo ainda que a pergunta vá bater numa ferida não sarada. É quase uma norma tácita.

E aos quinze anos, andávamos a correr de um lado para o outro e a estudar com esforço, entre ensaios e aulas. Quase não tive tempo de olhar para mim e para os outros, sempre com a ideia que a geografia é uma coisa abstracta e passageira. Como um trampolim para o futuro.

Os amores esbarravam no trabalho. Eram sonhos naturais enclausurados nos bancos do metro ou do autocarro. Eram paixões amputadas à nascença. Mas existiam, claro que tinham que existir.

Por isso deve ser bom olhar para um rosto que prova que a memória existe.

Cartas e desenhos, tenho alguns na casa da minha mãe. Mas, hoje parecem-me ser vida de outra pessoa. Lá longe. E parece-me, por isso e mais uma vez ser muito mais velha do que o que sou.

Beijinhos

Alien8 disse...

Marginal,

Viajas agora pela adolescência.

E pela paciência :)

Com 15 anos também, ouvi pela primeira vez o "Se". Ouvi, porque declamado, "Se" porque em tradução para Português (boa, aliás, mas já não sei de quem). Mais tarde procurei o original, li-o e quase o memorizei.

Curiosos pontos comuns e outros, naturalmente, divergentes.

Por essa altura já tinha a mania que escrevia poemas e até os "recitava" (sobretudo os de outros) em público, eu que era o retrato da timidez. Mistérios...

Um beijo.

Marginal disse...

Lizzie,

Vale MUITO a "pena", "tinta", "lápis", (chama-lhe o que quiseres) com a qual nos vais dando a conhecer o teu universo :)

E a miuda com redeas curtas que eu fui, fica deliciada com a geografia abstrata dos teus passos, no vôo descrito, o ardor que se adivinha a mover a persistência...

Há nómadas como tu, que cruzam os céus, deixados que foram os camelos para outros fins :) e há nómadas como eu, só de alma, de coração, que ao longo da vida, foram procurando, foram partindo, partindo de si mesmos, mas partindo...

E mesmo os nómadas a fingir, como eu, nessas partidas perdem amigos ou sentem, que houve amigos que os perderam...

E ha os que ficam, como a Prozac e a irmã, minhas amigas de infancia e filhas da melhor amiga da minha mãe...e como a Rosarinho de quem vou sabendo com o correr das décadas...e outros de quem a vida me distancia, mas que o tempo não apaga...

E vão-se encontrando pessoas especiais que nos gritam "agrandaté nina" quando a vida nos faz sentir pequeninas :)

(Perdoa o "plagio" :) e o uso quem sabe inadequado :) não pude deixar de sorrir perante esta tua frase, escrita num outro sentido e contexto, porque encontro nela, todos os cambiantes das palavras que os amigos nos gritam, quando nos vêem no palco da vida indecisos entre a fuga e o incorporar do nosso verdadeiro papel na vida)

Idade.

O que é a idade?

Ainda não sei.

Mas tu viveste.Ardentemente. Cidades, gestos, músicas, pessoas, faróis, livros, papéis, outras vidas e a tua sempre também. Pela escrita, diria que a esperança ainda não se fadigou. E se assim é...


:)

Marginal disse...

Alien,

Eu comecei a escrever a partir do momento em que a minha professora me disse: vamos fazer uma redacção (mais tarde mudariam para composição) blá...blá...blá...

:) dificil era ter que parar :)

Poemas, comecei a escreve-los aos 14...escondidos e guardados.

No liceu gostava de declamar poesia, também. Florbela Espanca. Gostava muito de, no Frei Luis de Sousa, dizer,-Quem és tu? mas ainda mais,de responder: Ninguém :)

(do que eu me fui lembrar eheheh)

Quanto às traduções do IF, há várias, parece que foi traduzido por muitos, ao longo do século...deixo-te esta:

Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu,

Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...

Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...

Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...

Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...

Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio a construir de novo...

Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...

Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre...
Se vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...

Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minute se espraie em séculos fecundos...

Então, á ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.

Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!...



- tradução de Féliz Bermudes


Beijinhos

Lizzie disse...

Coitadinha de mim que o que mais escrevi foram cópias por via da dislexia:))
e não me fizeram grande efeito:)

Agora, por causa da falta de uma boa noite,ou dia,de sono com o cansaço nos ingredientes já estou a entrar na fase de trocar as sílabas.

Mas recuso-me a fazer cópias.

E quanto a rédeas curtas, minha querida, "disciplina militar". Ai de quem fizesse uma birra, por pequena que fosse. Nunca fui mimada. Como é tão comum, ou era, tinha medo do meu pai e respeito pela minha mãe.

Folgas só com os velhos Antónios e afins.

beijinhos

Vanda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marginal disse...

Lizzie,

...as minhas rédeas curtas, eram principalmente fruto do meu sentido de responsabilidade (sentia que eu é que tinha de cuidar da minha mãe e o infortunio em que ela se encontrava).

Também lhe tinha um respeito de morte.

Assim, por respeito, fui matando em mim alguns sonhos...


Considero a tua dislexia num elevado estado de evolução :)


Que se troquem as letras se é o preço de um pensamento em nada disléxico :)


Beijinhos

Ps- eu hoe tamb´m estou dislexica :) completamente disléxica nos endereços de mail :) troco-me toda :)

Marginal disse...

Fogo Lizzie!


As minhas grandes redeas curtas ao longo da vida foram sempre por amor.

Só o amor (que nada tem a ver com a dependencia económica, mas sim com o fazer feliz alguém, dar a alguém o que esse alguém por si só não teria) me limitou os meus passos e reteve muitas vezes a mochila...

Agora soa bem uma guitarra cheia de garra,ganas :)

Alien8 disse...

Marginal,

Ora bem, ora bem, ora bem... a tradução não era essa! Como é que eu me lembro? Não faço ideia, mas essa não era :))) De qualquer maneira, obrigado por ma deixares!

Acerca do Frei Luis de Sousa, não vais sem resposta :)))

Tive um excelente professor de Português na altura em que estudávamos o Frei Luis de Sousa.

O professor lia o texto e conseguia (oh espanto!) congregar a atenção da turma, pela forma expressiva como o fazia.

Chegou a essa famosa parte, e leu (ou disse, acho que ele já o sabia de cor...):

- "Romeiro, quem és tu?"

Calou-se. Após uma pequena pausa:

"Os senhores desculpem, mas eu não consigo dizer esta palavra. É uma palavra carregada de tudo... não consigo dizê-la."

E passou adiante.

E eu também vou passar adiante.

Um beijo.

Marginal disse...

Alien,
Não tiveste um excelente professor, tiveste à tua frente, um excepcional ser humano!

O facto de passares adiante, tantos anos depois, prova que, foste um belissimo aluno;)

Quanto à tradução, são muitas e aposto que todas elas mais recentes...

Se a encontrares, diz :)

Beijinhos